A dor da perda
A campanha institucional lançada pelo Grupo RBS "Violência no Trânsito - Isso tem que ter fim!" só pode contar com todo apoio e engajamento da sociedade gaúcha. Mas confesso que, quando vi aqueles bichos se enfrentando de maneira selvagem, pensei que fosse propaganda de mais um novo automóvel, já que aos finais de ano muitos novos modelos são lançados. Aliás, ainda deve estar sendo veiculada uma criação publicitária fazendo analogia entre um desses veículos e animais. Não é de hoje que os automóveis têm seus lançamento e publicidade de apoio baseados na tríade velocidade-virilidade-sucesso. É uma das propagandas mais enganosas, que amortecem e paralisam nosso senso crítico. Como podemos exteriorizar em um meio de transporte as nossas carências e aspirações? Será que um carro é agressivo, viril, ou essa imagem é fruto de nossa consciência alugada aos exploradores da frustração? Será que um carro tem identidade própria e só permite ser dirigido se for à alta velocidade? Ou isso será fruto de uma legislação frouxa, que tende a beneficiar homicidas? Será que um amontoado de metais, plástico, vidro e borracha, alimentado por variados combustíveis, têm o condão de nos transformar em pessoas felizes, de sucesso e amantes maravilhosos ou será isso fruto de uma sociedade doente, onde não interessa a liberdade e a segurança alheia desde que reinem nas ruas - e até nas calçadas - a primazia do eu absoluto? São questões que aguardam respostas sérias e não fruto de um leitor seduzido pelo aspecto emocional da campanha. No Brasil, os números da previdência social se nos alarmam com as mortes, apontam também um exército de mutilados. Gente que ligou o carro sentindo-se como um búfalo, urso ou tigre e foi acordada numa CTI hospitalar qualquer como um gatinho. Pior, como um gatinho indefeso, de miado débil, que dali para frente nem saberá tomar conta de sua vida sem contar com o amparo familiar e/ou público. Além do agressor homicida e das vítimas "ativas", que pagaram com suas vidas ou parte delas, têm-se o que é mais doloroso, as vítimas "passivas". Pessoas que sofreram o duro choque de ver seus entes queridos sãos e com vida e num zap, jazerem numa capela mortuária. Acompanhei de perto dois casos, por ser amigo dos pais das vítimas. Um deles foi um rapaz de 20 anos, que após uma noite na "balada" pegou seu carro e espatifou-se na Avenida Cavalhada. O outro de uma menina da mesma idade, que aceitou a carona oferecida por um conhecido numa saída de festa. Ambos jovens bonitos, de futuro promissor, vindos de famílias honradas. Nem posso descrever a dor, o desamparo, o abandono estampado na face desses pais. No primeiro caso, a dor era tão insuportável para o pai, que aquilo era como se fora uma peça pregada pelo espirituoso filho. Podia-se ver que ele estava crente que na manhã seguinte, lá estaria o menino, pronto para jogar futebol. A mãe, uma mulher alegre, com humor cativante, era a síntese das mães-vítima. Silêncio. Um silêncio que gritava e fazia eco pelos frios corredores, capelas e alamedas do cemitério. No segundo caso, o pai se desencontrou da filha e ela, supondo que ele não iria mais, aceitou a carona oferecida por outro jovem, que já havia bebido em demasia. O carro se desmanchou num dos postes da Avenida Padre Cacique. Todos podem imaginar como fica o coração e a cabeça de um pai numa situação dessas. Um pai que nunca se atrasou para levar a filha para a escola, para tomar as vacinas, para pagar seus estudos. Um homem trabalhador, que nunca chegou atrasado ao serviço, com uma folha de excelentes serviços. Até hoje ele se sente o verdadeiro motorista daquele veículo da morte... Dizer o quê! Além dos pais, vítimas são também demais familiares, namorados, "ficantes" e amigos. O ato da morte, da cessação do contato físico, ultrapassa em muito a figura do morto, conforme aprendemos nos livros, filmes e consultórios médicos. Cenas tristes, perturbadoras e irreversíveis. Por essas duas tragédias, tamanho 3x4 do macabro pôster de ocorrências no trânsito, penso que devemos unir a sociedade gaúcha nessa campanha e varrer os malefícios causados pelo mau uso do automóvel. Apelemos para todos os argumentos que houver para desestimular os "top guns" das ruas e estradas. As mãos que seguram um volante de forma irresponsável, podem ser melhor aproveitadas para construir uma sociedade mais saudável, frear a morte estúpida e acelerar a qualidade de vida, como propõe a louvável campanha.
Texto de Francisco Fragoso - publicado na seção Palavra do Leitor/jornal Zero Hora 29.12.07
Texto de Francisco Fragoso - publicado na seção Palavra do Leitor/jornal Zero Hora 29.12.07
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