Bichos meus

sexta-feira, março 19, 2010

Lição aos 109 anos

EXEMPLO DE VIDA

Ex-peão centenário tem aulas de alfabetização em asilo de Dom Pedrito

Quando está sentado em alguma cadeira e firma a vista cansada para além das árvores e dos passarinhos, o velho Santo Sant’ana Afonso alcança o céu e se vê peão moço, bem aprumado sobre os arreios de um cavalo nas lides diárias dos campos limpos de Dom Pedrito. De volta desses passeios imemoriais, o que mais mexe com sua longa vida de 109 anos são as aulas de alfabetização que recebe no único asilo da cidade.

É provável que não se dê muito conta disso, mas o que ele faz é um exemplo de que o importante é seguir adiante. Sempre. Na faixa etária dos 21 habitantes do Asilo da Velhice Major Alencastro Carneiro da Fontoura, essa disposição é ainda mais relevante.

– A maioria prefere ficar parada – constata o diretor da instituição, Manoel Garcia.

Santo e outros seis companheiros não se entregam e, pelo menos duas vezes por semana, recebem a visita de uma alfabetizadora do Projeto Brasil Alfabetizado. Nessas horas, Santo vira guri de galpão, enxerga o fogo de chão bem vivo, talvez uma espiga de milho espetada e girando sobre o vermelho quente das brasas. Coisa boa, deve pensar. Dá mesmo vontade de aprender as letras. Até onde a memória alcança nos melhores dias, Santo recorda que não foi muito adiante, não:

– Ih, a escola na campanha ficava longe, e eu não saía do “ovo e da uva”. Fui aprender mais depois que deixei a escola.

Essa lembrança corresponde a uma das lições das antigas cartilhas, do tempo da “vovó viu a uva” – não era assim que as crianças aprendiam a ler? Entre o ovo e a fruta, o menino Santo espana a poeira da idade e trava algumas pirraças bem-humoradas com Josi Storniolo Brasil, a mestra desses alunos tão especiais.

– Ele diz que se tiver de tomar banho não vem à aula – diverte-se a educadora.

Mas isso é só para implicar, chamar a atenção e dizer: “Ei, estou vivo, olhem pra mim”. Santo é o último a sair. Diz que não vai fazer as lições, mas faz. E sempre pede uma coisa que não irá ganhar: as cartilhas daquele tempo, com uma mulher vestida de vermelho e uma ovelhinha. Em compensação, lá estão as letras bem desenhadas. Se já conseguiu de fato ler, nesta nova fase ainda está juntando as letras.

Aposentadoria por idade foi obtida no ano passado

Alguns colegas, mais precisamente dois, deram um salto e estão na etapa da leitura. Talvez Santo não chegue a saborear essa maravilha. Mas isso não é o mais importante agora. O que interessa é se manter ocupado. Josi usa de artimanhas para segurar algumas mulheres no programa. Ler não querem muito, preferem pintar. Então, que pintem e depois voltem às letras, é a lei da alfabetizadora.

Vez em quando a memória pula muros e Santo vai parar em Caveiras, a localidade onde nasceu em 12 de março de 1901. Foi por lá que cresceu e se tornou adulto. As lembranças vagueiam, saudosas do espaço que ia e ia até encostar no horizonte, já quase sem se poder ver. O som tirado da gaita de boca o ajuda a descansar um pouco em algumas das fazendas por onde trabalhou, e a sonhar com bailes e chaleiras quentes.

Este homem desgarrado, solteiro e sem filhos para zelar a velhice, há anos foi encontrar abrigo no asilo. E desde o ano passado se tornou mais cidadão. Com certidão de nascimento, carteira de identidade e CPF feitos, foi aposentado por idade e teve conta aberta em banco, onde recebe seu salário. O passado vem na gaita, o presente se espalha nas letras desenhadas em folhas de papel. O gaudério Santo segue na lide.

MAURO TORALLESJornal Zero Hora/RS - 18 de março de 2010 | N° 16278

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