Bichos meus

domingo, novembro 13, 2011

São Petesburgo, a esplêndida.


                      Ainda não correm neves, e a temperatura, na bonita Praga, está aos jeitos dos invernos gaúchos, com o frio que enregela sem ser excessivamente invasivo. As florezinhas já recolheram-se à terra, mas, em compensão, os aromas das nozes descascadas a fumegar em panelinhas cromadas, nas feiras do centro, explodem deliciosamente. E assim, também, os perfumosos chás fervidos de fresco, em mentas e gengibres naturais. Súbito, como uma sacudidela, a  transição do outono para o inverno cuida de dar tempo à alma, para que, sem afoiteza, se vá munindo dos apetrechos do frio: os livros, as canecas para o chá, as mantas de algodão pelas poltronas. Os objetos comungam da experiência interior da alma no recinto da casa, pois que, creio, o inverno é fundamental para o espírito. E, ai!, que alegria é poder ouvir o samovar em ebulição, prometendo a fumegante água para o chá, nas tardes geladas! Como no tapete mágico, cuidemos, no entanto, de-arrepiar-caminho, a desviar os olhos, por ora, da linda Praga. Rumemos  em direção à transparência onírica de São Petesburgo.
                  Assombrosamente linda, a cidade é de uma altivez desconcertante. Há uma renda a cobri-la brancamente, 
como se o rio Neva a enobrecesse, elevando-a à consciência permanente do tempo. As pontes, debruadas por todos
os lados, aludem à música. A sensação é a de que a cidade existe para tornar visual a experiência de um ballet. Em 
Petesburgo, o senso visual comunica um espaço incomensurável de onirismo, de transcendência, e, nos romances de 
Dostoiévski, a constante alusão à fantasmagoria, no sentido do embelezamento etéreo, é frequente.

                   Imperial, toda ela responde à obsessão de Pedro, o Grande, em europeizar a Rússia, e, se o fez talhada ao
seu gosto, também o fez à custa do contraponto com a Moscou de alma eslava. Moscou exibe, nas curvas da História,
o orgulho de se saber russa até-a-raiz-dos-cabelos, por assim dizer, ao passo que Petesburgo nasceu para
replicar (e ultrapassar) os salões fancy de Paris. Por certo, leitor, o talhe na educação, em Petesburgo, é marcado pelo cosmopolitismo, e, se não o genuíno, certamente o que se acredita como sendo. Mas isso são, já, pataratas, pois que o 
causo é que a cidade é um deslumbramento, uma jóia ortodoxa, com cheiros arquitetônicos bizantinos e neoclássicos. 
                A Igreja do Salvador do Sangue Derramado, irmã-gêmea aladinesca da São Basílio, em Moscou, em requintes
de sofisticação visuais superiores, foi erguida sob o signo da fatalidade. No exato local em que morreu o czar
Alexandre II, erigiu-se a belíssima Igreja, toda ela bizantina, em mosaicos de genuidade impecável, e que já serviu
de depósito de lixo, em períodos de convulsões sociais. Linda, ela exige, de quem a contempla, o marejamento, como
se a luta diante da beleza fosse vencida de antemão. Há pedaços de cores a espiar por entre as nuvens, num choque
de maravilhas com os azuis, verdes e dourados da fachada.                                            
                   
                 A cidade é cortada pela Avenida Nevsky (Nevsky Prospekt)detalhada sob ângulos diversos nos romances
de Gogol, Tolstoi e Dostoiévski. Nada, contudo, nem mesmo a Avenida de vocação histórica, prepara para o encontro
com o Museu Hermitage. Esplêndido, o Palácio de Inverno, onde moraram os czares russos até o final do período
monárquico, veste-se em verdes e brancos, sob a égide de sua primeira habitante: a Imperatriz Catarina, a Grande, e
domina o complexo arquitetônico do Museu. Ainda que estivesse despido das obras de arte que o compõem, o interior do Palácio emanaria a consciência impensável do vocábulo magnífico.

        O deleite diante do que se vê, dentro dele, beira o dos contos de fadas. A reunião de nuances e tons das pedras que o fortificam e que debruam vasos, tampos de mesa, detalhes de relógios à antiga, é estarrecedora. Suas 1.057 salas e 117 escadarias quase que passam despercebidas, pois que os objetos de arte, a arquitetura, a decoração, tudo se liquefaz em um acinte aos olhos, desdobrado em sentidos múltiplos de beleza. Para percorrê-lo à extensão, o cálculo é claro como uma campânula de vidro: no caso de que se gaste um minuto (!) diante de cada uma das obras de arte do Museu, seriam necessários 11 anos para vê-las todas. Mas, ave!, para que se precisa de tanto, quando o belo pode ser contemplado por toda uma vida em um mesmo objeto? Já não é pela multiplicidade de objetos, mas por senti-los, que comunico a assombrosa beleza do Museu.
                       Como em um mosaico de sedarias diáfanas, Petesburgo reúne magias. Visitamos o último apartamento
em que morou Dostoiévski, tendo acontecido o encontro com o pequeno e habitado quarto do escritor, onde foi
escrevinhado, à base de chá, Os Irmãos Karamazov. Fomos ter com ele, diante do busto simples e forte, em sua tumba. As emoções corriam em torvelinho: entramos na casa da poeta Anna Akhmatova. Sem qualquer pretensão à moda, a casa quase a anuncia, como também o faz com o sofrimento por que passou ela em vida. 
                    
                     O sol já se foi há muito, havendo os ponteiros do relógio batido as 5 horas da tarde. O céu, lá fora, mostra-se decidido a fazer noite. Corro a selar a cartinha, a tempo de remetê-la pelos Correios e Telégrafos tchecos. Fino e  delicado como a tessitura do algodão, o selo é de Junichiro Tanizaki: "Retirou um galho de eulália do arranjo 
oferecido à lua e o anexou à carta". Tamanha delicadeza, em uma imagem tão singela, me comove o coração.

                 Da divinal Praga,
                                          Lívia Sganzerla Jappe
10 de novembro de 2011 

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