Os ingredientes da gratidão
- Muitas das expectativas que nutrimos em relação a novos relacionamentos são fantasiosas. Um dos preconceitos mais arraigados associa erudição com sensibilidade, cultura com delicadeza e inteligência com generosidade.
Entretanto, o convívio com pessoas estimuladas à gratidão demonstra que as manifestações de reconhecimento mais candentes, com frequência, brotam de criaturas rudes e toscas, que jamais exercitaram a dissimulação para serem agradáveis ao seu circulo social, que por ser igualmente simplório e límpido, nunca abriu espaço à hipocrisia.
Pergunte a qualquer médico experiente e ele relatará comoventes histórias de gratidão de pacientes socialmente humildes, mas incomparavelmente puros.
O Argemiro veio de Bagé com uma sacola de exames e uma enorme ansiedade que fez com ele batesse com a cabeça na porta e entrasse no meu consultório aos trambolhões. Na entrada, já fez uma confissão apaixonante: “Doutor, me desculpe, mas eu sou muito grosso e estou nervoso. O senhor não imagina como essa combinação atrapalha!”
Quando terminei uma longa explicação sobre a sua doença e a sorte que tivera em ter diagnosticado um tumor tão precoce, ele abriu um sorriso aliviado e confessou que, ao sair de casa, antecipara à mulher que ninguém o cortaria, mas que agora, entendida a situação, ele queria muito que eu retirasse aquele bicho do seu peito.
Enquanto preenchia os papéis da solicitação de baixa hospitalar, ele se pôs a falar do seu trabalho e contou que passara a vida comprando e vendendo cavalos, e que aquela era a única coisa que, de fato, entendia. Depois de explicar como fazia para saber se gostava ou não de um animal, interrompeu o monólogo e comentou que eu devia estar surpreso com esta conversa toda “mas quando o senhor falava da minha doença com o seu jeito calmo de explicar as coisas, eu fiquei pensando: Mas tchê, que Doutor! Se esse fosse um cavalo, eu comprava!”
Difícil imaginar uma gratidão mais explícita ou uma declaração de amor mais original.
Jornal ZERO HORA/RS 25 de fevereiro de 2012 | N° 16990VIDA E SAÚDE | J. J. CAMARGO
( Dr. Camargo, pneumologista, grande nome no transplante pulmonar, passou a escrever no espaço ZH que por anos foi de Moacir Scliar)
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