Gratidão, a mais nobre das virtudes por conter em si todas as outras.
Gratidão visceral
Quando se é médico por muito tempo, se aprende os múltiplos significados da gratidão, reconhecida como a mais nobre das virtudes por conter em si todas as outras.
Ela é sempre bem-vinda, mas é inevitável que seja classificada em função de resultados e circunstâncias. O festejo ruidoso por algum tratamento bem sucedido tem ares de oba-oba, e não exige nenhum rompante de grandeza para ser exercido. Em geral, os agradecimentos muito espalhafatosos se esvaem na primeira ameaça de intercorrência ou complicação.
A verdadeira gratidão tem raiz mais profunda, muito além do verniz rutilante da ostentação e da hipocrisia.
Quando o quarteirão da Santa Casa ainda era aberto, eram comuns os assaltos a pedestres na Avenida Independência e a corrida dos bandidos em direção à Osvaldo Aranha.
O Carlos Eduardo era um assaltante conhecido no território. Uma manhã, ele bateu a carteira de um velho procurador de justiça na esquina da Cel. Vicente, jogando-o ao chão. Quando se deu conta que a vítima ainda tinha um relógio de pulso, voltou para ultimar o roubo e foi surpreendido pela reação do assaltado, que estava armado e desferiu um tiro de baixo para cima, atingindo-o no meio do peito.
Espumando e rubro de sangue, o ladrão foi trazido por transeuntes ao hospital mais próximo e colocado na porta do bloco cirúrgico do Pavilhão Pereira Filho, onde estávamos em meio a uma cirurgia.
Depois de duas horas de tentativas frustradas de reconstrução de um ventrículo dilacerado e de transfusões maciças de sangue, o Carlos Eduardo morreu.
Passada uma semana, fui surpreendido com a informação, de que procurava por mim uma senhora, a mãe do rapaz baleado.
Consumida pela dor, ela confessou: “Doutor, meu filho só teve amigos que não prestavam, e eu sempre soube que ele ia terminar assim. Mas eu já chorei muito a perda dele e estou aqui para agradecer o que fizeram para tentar salvá-lo. Acontece que sou pobre e não tenho nada para oferecer, e então pensei em doar um pouco do meu sangue, porque sei que vocês sempre precisam de sangue, e talvez ele sirva para salvar alguém que precise muito viver.”
Foi um abraço longo e silencioso. No altar da gratidão, ela se postara para ofertar a última gota do resto de si. Sempre que relembro esse episódio, penso nas muitas coisas bonitas que podia ter dito àquela mãe e não disse. E pela mais simples das razões: não consegui falar.
Jornal Zero Hora/RS17 de março de 2012 | N° 17011PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO
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