A história que se repete como avacalhação
Zero Hora 30 de dezembro de 2007 N° 15464
Cíntia Moscovich/escritora
Nas duas últimas sextas-feiras, dias 21 e 28 de dezembro de 2007, milhares de carros e ônibus deixaram a cidade atrolhados, gente e bagagem espremidas, com destino ao litoral. Embora inocentes na alegria dos feriados, esses carros e ônibus podem ser tomados como símbolos da oscilação entre dois pólos opostos, movimento que nos faz, a nós, gaúchos, sermos o que somos: criaturas divididas entre a barbárie e a civilização. Se há uns cem anos, os gaúchos ainda estavam metidos em revoluções, com degolas e outros procedimentos pouco agradáveis, da metade do século passado para cá nossa vocação de pegar em armas começou a se deslocar: da campanha para o litoral. A tal nostalgia do pampa e a reverência ao passado mítico de uma terra que fica no fim do país e quase no rabo do continente cedeu lugar, de forma paulatina, à melancolia do mar: trocamos um descampado de pasto por outro, de água salgada. Nessa pressa de trocar o pingo pelo carro, as alpargatas pelas havaianas, a bombacha pela sunga, a canha pela caipirinha e a noite pelo dia - o trabalho pelo descanso, afinal - , repete-se o rito ancestral - que era, e continua sendo, de um barbarismo atroz. Seja pelos apartamentos e casas nos quais se amontoam famílias, seja pelas filas até para comprar pão, seja pelo combustível queimado nos engarrafamentos, seja pelo preço das refeições e hospedagem, seja como for, sob qualquer ponto de vista, a praia é quase tão sanguinária quanto traçar risco à faca no pescoço alheio. Luiz Antonio de Assis Brasil, querido escritor conterrâneo, defende o Princípio da Avacalhação, segundo o qual tudo o que começa bem tende a decair e a se esboroar. Na batalha da praia, nosso passado aguerrido perdeu a nobreza: dá-lhe carros com alto-falantes pagodeiros, e pregões aos berros, e queimaduras de sol, e crianças perdidas, e areia voando no Nordestão, e a bola da pelada no cocuruto de alguém. Chega a ser desmoralização.Na cidade durante o Réveillon e férias, a história, embora sendo a mesma, é outra. Porto Alegre e demais núcleos urbanos do Estado transformam-se em paraíso. Há vagas na rua para os carros, há lugares em cinemas, bares e restaurantes, o trânsito é manso e comportado. Os ônibus circulam com lugares desocupados, caem os números de assaltos e de acidentes. Os freqüentadores dos parques encontram sombras de árvores para se recostar, e a natureza se esmera para uns poucos que caminham, correm ou andam de bicicleta. O luxo do luxo da urbano-civilidade. Outro muito querido escritor gaúcho, nosso Luis Fernando Verissimo, há anos, fundou a Sapa, Sociedade Amigos de Porto Alegre, destinada a congregar, ainda que de forma dispersa, aqueles que ficaram em Porto Alegre no verão. Aqui e agora, se propõe criar a Saci, Sociedade dos Amigos da Cidade, que uniria, espiritual e transcendentemente aqueles gaúchos de todos os costados que não foram à praia. (Também pode ser a Sagu, Sociedade dos Amigos Gaúchos Urbanos). Seria mais uma vitória na luta da civilização contra a barbárie. Vitória que reafirmaria nosso vaivém ambíguo, é certo, mas ainda assim vitória.
Cíntia Moscovich/escritora
Nas duas últimas sextas-feiras, dias 21 e 28 de dezembro de 2007, milhares de carros e ônibus deixaram a cidade atrolhados, gente e bagagem espremidas, com destino ao litoral. Embora inocentes na alegria dos feriados, esses carros e ônibus podem ser tomados como símbolos da oscilação entre dois pólos opostos, movimento que nos faz, a nós, gaúchos, sermos o que somos: criaturas divididas entre a barbárie e a civilização. Se há uns cem anos, os gaúchos ainda estavam metidos em revoluções, com degolas e outros procedimentos pouco agradáveis, da metade do século passado para cá nossa vocação de pegar em armas começou a se deslocar: da campanha para o litoral. A tal nostalgia do pampa e a reverência ao passado mítico de uma terra que fica no fim do país e quase no rabo do continente cedeu lugar, de forma paulatina, à melancolia do mar: trocamos um descampado de pasto por outro, de água salgada. Nessa pressa de trocar o pingo pelo carro, as alpargatas pelas havaianas, a bombacha pela sunga, a canha pela caipirinha e a noite pelo dia - o trabalho pelo descanso, afinal - , repete-se o rito ancestral - que era, e continua sendo, de um barbarismo atroz. Seja pelos apartamentos e casas nos quais se amontoam famílias, seja pelas filas até para comprar pão, seja pelo combustível queimado nos engarrafamentos, seja pelo preço das refeições e hospedagem, seja como for, sob qualquer ponto de vista, a praia é quase tão sanguinária quanto traçar risco à faca no pescoço alheio. Luiz Antonio de Assis Brasil, querido escritor conterrâneo, defende o Princípio da Avacalhação, segundo o qual tudo o que começa bem tende a decair e a se esboroar. Na batalha da praia, nosso passado aguerrido perdeu a nobreza: dá-lhe carros com alto-falantes pagodeiros, e pregões aos berros, e queimaduras de sol, e crianças perdidas, e areia voando no Nordestão, e a bola da pelada no cocuruto de alguém. Chega a ser desmoralização.Na cidade durante o Réveillon e férias, a história, embora sendo a mesma, é outra. Porto Alegre e demais núcleos urbanos do Estado transformam-se em paraíso. Há vagas na rua para os carros, há lugares em cinemas, bares e restaurantes, o trânsito é manso e comportado. Os ônibus circulam com lugares desocupados, caem os números de assaltos e de acidentes. Os freqüentadores dos parques encontram sombras de árvores para se recostar, e a natureza se esmera para uns poucos que caminham, correm ou andam de bicicleta. O luxo do luxo da urbano-civilidade. Outro muito querido escritor gaúcho, nosso Luis Fernando Verissimo, há anos, fundou a Sapa, Sociedade Amigos de Porto Alegre, destinada a congregar, ainda que de forma dispersa, aqueles que ficaram em Porto Alegre no verão. Aqui e agora, se propõe criar a Saci, Sociedade dos Amigos da Cidade, que uniria, espiritual e transcendentemente aqueles gaúchos de todos os costados que não foram à praia. (Também pode ser a Sagu, Sociedade dos Amigos Gaúchos Urbanos). Seria mais uma vitória na luta da civilização contra a barbárie. Vitória que reafirmaria nosso vaivém ambíguo, é certo, mas ainda assim vitória.
Vitórias, saúde e alegria para nós todos, em todos os lugares, no ano de 2008.
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